O filósofo

O filósofo
Mania de Explicação - Adriana Falcão, ilustrações Mariana Massarani

Aos pais das crianças dos grupos I e II

Amigos pais,


Pelo terceiro ano consecutivo, daremos continuidade ao projeto “Pensando pensamentos”. Este projeto consiste na realização de oficinas de filosofia com as crianças do grupo I e II, conduzidas pelos educadores e supervisionadas por mim, Adriana e Letícia. As oficinas têm como objetivo realizar atividades lúdicas que respeitem as especificidades cognitivas e discursivas das crianças e que promovam experiências de pensamento filosófico.

As crianças gostam de pensar e queremos que este exercício se torne um hábito sempre mais prazeroso e fértil. Com a oficina pretendemos disponibilizar mais um espaço para estimular nossos pequenos filósofos a investigarem, refletirem e dialogarem sobre suas experiências cotidianas, valorizando uma disponibilidade investigativa que nós adultos muitas vezes perdemos, já que, freqüentemente, acomodamos nosso pensamento à forma como as coisas estão estabelecidas. Principalmente hoje, quando nossa cultura valoriza e estimula posturas mais práticas e menos especulativas: eficácia, busca de resultados, competência, refém de um imediatismo e um pragmatismo que tendem a ser muito empobrecedores do ponto de vista do entendimento das coisas, da compreensão de nossas ações e escolha de nossos projetos.

A partir da mediação dos educadores, a oficina de filosofia pretende ser um momento em que as crianças possam ´pensar filosoficamente´, de forma cooperativa, dialógica e democrática, e não aprender ´lições de filosofia’ ou de ‘história da filosofia’. Queremos ‘filosofar com as crianças’, pensar juntamente com elas, refletido sobre alguns problemas e conceitos que precisam continuamente ser questionados, analisados e re-significados. O ganho pode ser sutil, mas é rico em implicações: a capacidade de questionar, de não aceitar respostas fáceis, de pensar de forma multifacetada, de problematizar, de lidar com as diferenças, de aceitar o outro, pensar e agir de forma refletida, criativa, autônoma, livre, flexível, posturas estas que, acreditamos, refletirão positivamente ao longo de toda a educação.


Espero que vocês compartilhem do nosso entusiasmo!

Abraços,

Luciana Almeida

É preciso aprender a brincar!


É preciso aprender a brincar!
Rubem Alves
Eu disse "caixa de ferramentas" e "caixa de brinquedos". Santo Agostinho disse "ordem da utilidade" e "ordem da fruição". Freud disse "princípio da realidade" e "princípio do prazer". Martin Buber disse "o mundo do 'isso'" e "o mundo do 'tu'". É tudo a mesma coisa.
Mas quem disse primeiro foram as Sagradas Escrituras. Elas contam que Deus estava infeliz. O vazio em que vivia lhe dava tédio. Por isso teve um sonho. Sonhou com um jardim _não há nada que dê mais alegria que um jardim. E decidiu plantar um jardim para ficar alegre.
Começou nos confins do vazio, criando as grandes estrelas, o Sol, a Lua, e foi afunilando, afunilando, até chegar a um lugar bem pequeno, onde plantou o seu sonho: o Paraíso. Fontes, árvores frutíferas, flores, pássaros, borboletas, animais de todo tipo e até um vento fresco e perfumado que soprava nas tardes.
Cecília Meireles resumiu essa estória num minúsculo poema enorme:
"No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta.
No planeta, um jardim.
No jardim, um canteiro.
E no canteiro, o dia inteiro
Entre o mistério do Sem-Fim e o planeta
A asa de uma borboleta...".
Era o jardim das delícias, destino dos homens, destino do Universo, destino de Deus! O Paraíso era melhor que o céu. Prova disse é que Deus passeava pelo jardim ao vento fresco da tarde... Terminado o seu trabalho de seis dias, Deus parou de trabalhar. Entregou-se então àquilo para que o trabalho havia sido feito: uma deliciosa vagabundagem contemplativa. Os olhos olharam para o jardim e experimentam o êxtase da beleza! "E viu Deus que era muito bom..." Os olhos de Deus brincavam com o jardim. Nada havia para ser feito. Tudo para ser gozado.
Nos limites do meu conhecimento, Jacob Boehme (1575-1624) foi o único teólogo que entendeu isso. Herética e eroticamente, ele disse que a única coisa que Deus faz é brincar e que o Paraíso era um lugar para que os homens brincassem uns com os outros e com as coisas ao seu redor _homem e mulher, para que um brincasse com o corpo do outro. Perderam o Paraíso quando desaprenderam a arte de brincar.
Os poemas sagrados colocam as coisas na ordem certa. A semana bíblica começa com os dias de trabalho e termina com o dia de gozo. A igreja alterou essa ordem. Primeiro o dia da contemplação: o corpo descansa para trabalhar melhor...
A forma como as ferramentas são aprendidas é muito simples. Tudo começa com o sonho. O corpo sonha. Pois, como Freud percebeu, ele é movido pelo "princípio do prazer". O sonho é o meu pequeno paraíso. Se fôssemos feiticeiros, se tivéssemos o poder mágico dos deuses, bastaria dizer o sonho em voz alta para que ele se realizasse.
Mas somos fracos seres humanos e temos necessidade de pensar. O sonho dá ordens à inteligência: "Pense, invente as ferramentas de que necessito para realizar o meu sonho". Aí a inteligência pensa. Se o sonho não existe, é inútil dar ordens à inteligência. Ela não obedece.
Veio-me a idéia de que a inteligência muito se parece com o pênis. Não se assuste: o mundo está cheio das analogias mais estranhas. Pois o que é o pênis? É um órgão que, no seu estado normal, é um apêndice ridículo, flácido, que realiza funções excretoras automáticas, que não demandam grandes reflexões. Mas, se provocado pelo desejo, ele passa por curiosas metamorfoses hidráulicas que lhe dão a capacidade de ter prazer, de dar prazer e de criar vida. Se não há desejo, é inútil que a cabeça lhe dê ordens.
Assim também é a inteligência. No cotidiano, ela se encontra num estado flácido que é mais do que suficiente para a realização das tarefas rotineiras. Quando, entretanto, é provocada pelo desejo, ela cresce e se dispõe a fazer coisas ditas impossíveis. Assim viu Fernando Pessoa, que disse: "Sinto uma erecção na alma". Uma inteligência flácida é uma inteligência sem desejo.
Meu amigo Eduardo Chaves observou que, ao contrário do que anuncia o best-seller "Inteligência Emocional", a verdade é o oposto. Não há inteligência emocional. A inteligência jamais procura a emoção. É a emoção que procura a inteligência. É a emoção que deseja ser eficaz para realizar o sonho. Mas a capacidade de brincar também precisa ser aprendida. E ela tem a ver com a capacidade do corpo de ser erotizado pelas coisas à sua volta, de sentir prazer nelas. Nossos sentidos _a visão, a audição, o olfato, o tato, o paladar_ são órgãos de fazer amor com o mundo, de ter prazer nele.
Mas não basta ter olhos, nariz, ouvidos, língua, pele. Os sentidos, no seu estado natural, podem sofrer daquela flacidez sobre que falei... Roland Barthes sugeriu, então, que a educação dos sentidos fosse semelhante ao "Kama Sutra", o ensino das várias posições possíveis de fazer amor com o mundo. Mas isso, é claro, exige que os professores sejam mestres na dita arte...
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u896.shtml