O filósofo

O filósofo
Mania de Explicação - Adriana Falcão, ilustrações Mariana Massarani

Aos pais das crianças dos grupos I e II

Amigos pais,


Pelo terceiro ano consecutivo, daremos continuidade ao projeto “Pensando pensamentos”. Este projeto consiste na realização de oficinas de filosofia com as crianças do grupo I e II, conduzidas pelos educadores e supervisionadas por mim, Adriana e Letícia. As oficinas têm como objetivo realizar atividades lúdicas que respeitem as especificidades cognitivas e discursivas das crianças e que promovam experiências de pensamento filosófico.

As crianças gostam de pensar e queremos que este exercício se torne um hábito sempre mais prazeroso e fértil. Com a oficina pretendemos disponibilizar mais um espaço para estimular nossos pequenos filósofos a investigarem, refletirem e dialogarem sobre suas experiências cotidianas, valorizando uma disponibilidade investigativa que nós adultos muitas vezes perdemos, já que, freqüentemente, acomodamos nosso pensamento à forma como as coisas estão estabelecidas. Principalmente hoje, quando nossa cultura valoriza e estimula posturas mais práticas e menos especulativas: eficácia, busca de resultados, competência, refém de um imediatismo e um pragmatismo que tendem a ser muito empobrecedores do ponto de vista do entendimento das coisas, da compreensão de nossas ações e escolha de nossos projetos.

A partir da mediação dos educadores, a oficina de filosofia pretende ser um momento em que as crianças possam ´pensar filosoficamente´, de forma cooperativa, dialógica e democrática, e não aprender ´lições de filosofia’ ou de ‘história da filosofia’. Queremos ‘filosofar com as crianças’, pensar juntamente com elas, refletido sobre alguns problemas e conceitos que precisam continuamente ser questionados, analisados e re-significados. O ganho pode ser sutil, mas é rico em implicações: a capacidade de questionar, de não aceitar respostas fáceis, de pensar de forma multifacetada, de problematizar, de lidar com as diferenças, de aceitar o outro, pensar e agir de forma refletida, criativa, autônoma, livre, flexível, posturas estas que, acreditamos, refletirão positivamente ao longo de toda a educação.


Espero que vocês compartilhem do nosso entusiasmo!

Abraços,

Luciana Almeida

Kohan - Infância e Filosofia

Infância e filosofia
Walter Omar Kohan

Por onde começar? Onde encontrar a infância deste texto? De que maneira se aproximar a infância da à infância e filosofia? Os organizadores do livro fizeram muito bem: colocaram a infância no início de todas as conjunções e de todos os saberes. A infância está primeira em todos os títulos dos capítulos deste livro. Também o estará no interior deste. Talvez demore um pouquinho até chegar a essa posição, mas seu lugar não está ameaçado pela estratégia escolhida. Apenas espero que a filosofia, pelo menos a que eu consiga afirmar, seja uma boa companheira da infância.
Quem sabe a etimologia nos ajude a começar. Vamos ver, através dela, a infância da palavra ‘infância’, seu nascimento. Imagino algum gesto de impaciência de parte de algum leitor conhecedor da etimologia. Peço-lhe um pouco de paciência. A infância também tem a ver com re-visitar certos lugares como se fosse a primeira visita. De uma repetição pode nascer uma diferença. Trata-se de uma palavra latina que nasceu, pela primeira vez, há mais de vinte séculos. Alguém poderia pensar que está começando a ficar velha. Talvez não, depende muito de como ela seja pronunciada. Os que estudam a etimologia dizem que os primeiros nascimentos da palavra infância estão muito ligados às normas e ao direito, ao domínio da res pública muito mais do que ao âmbito privado ou familiar. Vamos lê-los:
“Um indivíduo de pouca idade é denominado infans. Esse termo está formado por um prefixo privativo in e fari, ‘falar’, daí seu sentido de ‘que não fala’, ‘incapaz de falar’. Tão forte é seu sentido originário que Lucrécio emprega ainda o substantivo derivado infantia com o sentido de ‘incapacidade de falar’. Porém, logo infans -substantivado- e infantia são empregados no sentido de ‘infante’, ‘criança’ e ‘infância’, respectivamente. De fato, é desse sentido que se geram os derivados e compostos, todos de época imperial, como infantilis, ‘infantil’; infanticidium, ‘infanticídio’, etc.”

Até aqui o que “já sabemos”, a idéia de que, no seu nascimento, a palavra ‘infância’ está associada a uma falta, a uma ausência, que é inscrita no marco de uma incapacidade. Porém, deixe-mos falar um pouco mais aos etimólogos:
“[...] Em geral, infans podia designar criança em idade muito mais avançada que aquela em que ‘não falam’, de modo que essa denominação é usual para as crianças até os sete anos [...] Na verdade, são encontrados usualmente usos de infans referindo-se a pessoas que se aproximam inclusive dos treze ou quinze anos. Então, podemos entender que infans não remete especificamente à criança pequena que não adquiriu ainda a capacidade de falar, mas se refere aos que, por sua minoridade, não estão ainda habilitados para testemunhar nos tribunais: infans é assim ‘o que não se pode valer de sua palavra para dar testemunho’.” Castello, Luis Ángel; Márcico, Claudia, 2006, no prelo.
O texto agrega finalmente que, na cultura latina onde a res publica é tema de importância central, “os que não podem participar são, de algum modo, marginais; temporariamente, no caso dos menores e, definitivamente, no caso dos deficientes mentais, aos quais também se costumava chamar infantes.” (ibid.)
Percebamos então que a etimologia latina da palavra ‘infância’ reúne às crianças aos não habilitados, aos incapazes, aos deficientes, ou seja, a toda uma série de categorias que encaixadas na perspectiva do que elas “não têm” são excluídas da ordem social. De maneira que a infância está marcada desde a sua etimologia por uma falta não menor, uma falta que não pode faltar, uma ausência julgada inadmissível, a partir da qual uma linguagem, um direito e uma política dominantes consagram uma exclusão. Por razões de uma falta, a infância ficou de fora, como igual que os deficientes, estrangeiros, ignorantes e tantos outros faltosos.
Como veremos a seguir, a exclusão da infância da palavra e das instituições é ainda muito mais antiga e remonta-se, pelo menos, aos gregos do período clássico. Por outro lado, a percepção da infância desde a perspectiva da falta iluminou - e ainda ilumina - os mais nobres ideários pedagógicos, discursos filosóficos e saberes científicos da modernidade. O sentido principal deste capítulo é, de alguma forma, ajudar a inverter esse olhar: pensar a infância desde outra marca ou, melhor, a partir do que ela tem e não do que lhe falta: como presençapresencia e não como ausência; como afirmação e não como negação, como força e não como incapacidade. Essa mudança de percepção vai gerar outras mudanças nos espaços outorgados à infância no pensamento e nas instituições pensadas para acolhê-la.
Para esse movimento, proponho algumas seções principais de um texto que se sabe inconcluso, inquieto, incerto, ainda sobre as questões que afirma com a maior força e veemência. Não temos certezas nem pretensões fundacionistas. Apenas buscamos ser honestos e afins à infância. Estamos atrás de nascimentos, novos inícios, para o pensamento, para o pensado e também para o não pensado.
As seções do textos são: “i. A infância educada pela filosofia”; “Outras infâncias afirmadas pela filosofia” e “iii. Infância e estrangeiridade, num infante da filosofia, e numa criança que filosofa”. O leitor já deve ter percebido que vamos ter que fazer um longo e complexo percurso até conseguir colocar a infância no seu lugar, no lugar dos inícios afirmativos. É que com a filosofia não é fácil. Talvez porque a filosofia tem a ver com o pensamento e nesse reino tudo todo exige leva um pouco de trabalho, pelo menos quando quer ser explorado com certo cuidado. Talvez porque ainda nos dê mais trabalho do que suponhamos tirar a infância de alguns lugares que a tradição lhe consagra para ela há muito tempo. Por último, talvez porque as coisas quando são pensadas detidamente são sempre um pouco mais complexas do que parecem à a primeira vista.
Em tudo caso, eis a nossa rota. A primeira seção, “A infância educada pela filosofia”, supõe uma primeira forma de relação mais clássica e tradicional: a filosofia é uma produção de pensamento e a infância tem sido - desde sua invenção moderna se acreditamos em Ph. Áries ou desde as suas mais diversas invenções epocais, se somos um pouco mais críticos – um objeto privilegiado de produção de pensamento. Com efeito, em toda a história e com muito mais ênfase desde o final do século XIX, uma série de saberes disciplinares (parte do que Foucault denominou de “ciências humanas”) têm elaborado um conjunto de saberes sobre a infância. A filosofia não é uma exceção e praticamente desde que existe filosofia existe filosofia da ou sobre a infância, saberes afirmados sobre ela, pretensões de captura, tentativas de dar conta de sua forma. Nesta parte do texto pontuaremos algumas marcas, já clássicas, antigas e modernas que nos permitirão apreciar modos diversos de pensar a infância mas também um certo lugar consagrado pelos filósofos na sua educação. Nos referiremos brevemente a pensadores como Platão, Aristóteles e Kant.
A segunda seção, “Outras infâncias afirmadas pela filosofia”, se mantém ainda no mesmo registro da anterior, só que muda significativamente bastante tanto a forma dos saberes filosóficos sobre a infância quanto as seus desdobramentos para pensar uma educação da infância. Muda-se o signo da etimologia e o que era negatividade e ausência é percebido de outra maneira e dá lugar a diversas criações conceituais. Nesta seção trabalhamos, sobretudo, com filósofos contemporâneos como F. Nietzsche, J.-F. Lyotard, G. Agamben, G. Deleuze, e J. Derrida, mas também fazemos referências a filósofos gregos como Heráclito e o mesmo, mas diferente, Platão da seção anterior.
A terceira seção, “Infância e estrangeridade, num infante da filosofia, e numa criança que filosofa”, só é possível pelas duas seções primeiras que preparam a terra para que alguma coisa como essa possa emergir. De alguma maneira, esta terceira seção inverte a primeira: a infância já não é objeto mas sujeito, já não é pensada, mas pensante; e a nobre filosofia, que estava antes no início pensando a tenra infância agora é pensada pela própria infância. Assim, nesta seção, a filosofia já não é mais o produto do pensamento, mas a própria experiência do pensamento: a atividade de pensar de um infante que se adentra no mundo da filosofia e a produz; e a infância já não é mais uma categoria, conceito ou produto de pensamento, mas uma força de dois sujeitos diferentemente infantis, Sócrates e Milena, que afirmam, na filosofia, um espaço para pensar diferente e infantilmente a infância. Nesta forma de relação, as duas, infância e filosofia, ganham vida, movimento, expressividade; andam juntas, inquietas, abertas. Vamos acompanhar esse percurso.
i. A infância educada pela filosofia
Um detalhe interessante, ainda oferecido pela etimologia, é que os gregos antigos, os que inventaram a filosofia na forma em que hoje a pensamos e praticamos; os mesmos que inventaram a paideía e tantas outras coisas e tantas outras palavras, não inventaram a palavra ‘infância’. Não é um dado menor. Inclusive os filósofos, que gostavam de inventar palavras para coisas que só eles percebiam não sentiram necessidade de inventar uma palavra para a ‘infância’. No grego clássico existiam palavras, várias, para nomear as crianças; três são as principais (Castello; Márcico, 2006, no prelo): a primeira delas, téknon, está ligada ao verbo tíkto (‘dar a luz’; ‘parir’), e marca mais acentuadamente a filiação, o resultado do nascimento; na tragédia antiga encontra-se usada para reforçar o vínculo afetivo, geralmente, a propósito da mãe. É a menos utilizada usada pelos filósofos.
A segunda palavra é ‘paîs’, que está ligada à raiz temática indo-européia que tem a ver com a alimentação, a qual deu origem da qual se criaram palavras como patér (‘quem alimenta’, pai), paidagogós (‘quem conduz a criança’, ‘pedagogo’) ou a mais abstrata ‘paideía’, que significava ‘cultura’ e ‘educação’. Paîs era usada, em princípio, para designar a à criança em relação filial, fosse seja ela filho ou filha natural ou em propriedade, como era o caso dos escravos, mas gradativamente seu uso foi se estendendo até abranger crianças e jovens de diversas idades, até tornarem-se ser cidadãos no caso dos meninos ou até desposar-se no caso das meninas.
A terceira palavra é ‘neós’, que significava literalmente ‘jovem’, ‘recente’, ‘que causa uma mudança’, ‘novo’. Como seu significado, é uma palavra mais jovem e está ligada a um radical de significação temporal nu, de onde vem, por exemplo, o advérbio de tempo nûn, que significa ‘novo instante’, ‘agora’. Neós inicialmente designava tanto pessoas quanto coisas, animais e plantas. Palavras interessantes derivadas de ‘neós’ são neoterízo, ‘tomar novas medidas’, ‘provocar algo novo’ e neoterismós, que significa ‘novidade’, ‘inovação’, ‘revolução’.
De modo que, para chamar às crianças, os gregos recorreram a três campos semânticos: um estava ligado ao nascimento; outro estava ligado à alimentação e um terceiro estava ligado à criação, mudança ou novidade. De nenhum desses três campos tiraram um substantivo abstrato como poderiam ter sido teknía, paidía ou neía. Talvez por respeito ao fato das crianças não nascerem apenas de palavras ou delas providos, deixaram a à própria infância sem palavra. Porém, não a deixaram sem conceitos, sem idéias, sem filosofia. Muito menos sem educação. Assim, na Grécia clássica há uma bateria de discursos pedagógicos e filosóficos que supõem ou explicitam um conceito de infância e um lugar para ela, no pensamento e nas instituições.
Entre os filósofos gregos, um dos que mais se ocupou da infância foi Platão e seu testemunho é importante não apenas por si mesmo, mas pela sua influência na história das idéias pedagógicas no pensamento chamado ocidental. Como sabemos, Platão escreveu diálogos, nos quais ele mesmo ocupou um lugar infantil, na medida em que não foi personagem de nenhum deles, ele próprio não se deu a si mesmo a palavra. Um segundo aspecto interessante é que, sobretudo sobre tudo, em muitos dos seus primeiros diálogos há personagens literalmente infantis, de pouca idade, sendo alguns mais falantes e outros sem fala.
Muitas das observações sobre a infância estão colocadas em diálogos sobre questões éticas, políticas e, sobre tudo, educacionais, em particular Alcibíades I, Górgias, Ménon, Protágoras, A República e As Leis. Desde uma perspectiva platônica, a educação tem um fundamento político: é o tipo de educação que determina o caráter justo ou injusto de uma pólis (A República II 376c-d). De maneira tal que Platão, fortemente crítico da ordem política de seu tempo, propõe um programa educacional concentrado concentrada numa elite dos melhores, os aristoí, para levar a justiça à pólis. Nessa perspectiva, não há mudança política profunda sem mudança educacional profunda. Como os adultos, os já educados, não tem mais jeito, então a estratégia fundamental para as transformações políticas que a pólis exige passa, para Platão, pela educação da infância.
Platão era também fortemente crítico da educação dominante em seu tempo, aquela formação milenar baseada nos poemas de Homero e Hesíodo, com os quais “foram educados todos os gregos”. O problema principal desses poemas, na perspectiva platônica, é que eles oferecem modelos impróprios às crianças: deuses que mentem e que brigam, que são ciumentos e cometem toda sorte de crimes contra seus genitores, enfim, ali se afirma uma ética muito afastada da que Platão pretende para sua pólis. De maneira que, desde sua perspectiva, é necessário afirmar uma outra educação para a infância. Em se ocupando dessa outra educação, Platão atribui a infância as seguintes características (cf. A República II-IV):
a)A possibilidade frente à realidade. Uma criança é, antes que qualquer outra coisa, um membro potencial da pólis, a possibilidade de um futuro cidadão. Quanto mais se retrocede na vida humana, mais ela se encontra vazia de realidade e mais plena de possibilidades. Por tanto, quanto antes comece o processo de formação, de preenchimento dessas possibilidades inatas, muito melhor, na medida em que o material será mais tenro e maleável para receber as formas que um educador deseje lhe imprimir;
b)A inferioridade frente a superioridade; as crianças não participam do que para Platão são as formas superiores da alma humana, que dão lugar aos valores supremos da pólis. Por não participar do logos, as crianças são “menos” que os adultos, varões, atenienses. A inferioridade da infância é de diversos registros: epistemológico, ontológico, político;
c)A exterioridade perante a interioridade; frente ao adulto superior, a criança inferior fica excluída de diversos âmbitos: político, ético, cognitivo, epistemológico, estético. Desde o interior de um lógos que estabelece os limites de si próprio, o fora e o dentro, os que pertencem e os que não, Platão coloca as crianças, junto a outros grupos, como as mulheres e os escravos, fora dos limites da pólis: a infância é uma das formas da alteridade que uma interioridade central separa e manda para fora;
d)O material para os sonhos políticos; Platão considera a educação da infância, das melhores naturezas infantis, a estratégia principal para levar a frente sua utopia política; em poucas palavras, é através da educação dos que chegam ao mundo que se transformará, no longo prazo, a pólis dos que nele já estãojá estão no mundo. Os que já estão no mundo formam os que chegam ao mundo para que façam uma pólis mais justa, mais bela, melhor.
A infância entra, assim, num dispositivo bastante particular. Ela é o material das utopias, dos sonhos políticos dos filósofos e dos educadores. Há um modelo de ser humano já posto, transcendente, imutável, eterno, e educar a infância com vistas a esse modelo é considerado o melhor para elas e para o mundo. A história tem muitos anos. Platão é talvez quem mais claramente inaugura esta tradição no século IV a.C. Em certo sentido, o lugar outorgado à infância não carece de importância, na medida em que faz de sua formação a chave de todas as transformações; em outro sentido, é um lugar bastante incômodo na medida em que o melhor que os infantes podem fazer é se deixar levar a um outro lugar que sequer são capazes de perceber ou imaginar.
Escrever uma história das idéias filosóficas sobre a infância, mesmo que nos limitássemos ao mundo grego, exigiria um trabalho muito mais extenso do que este texto se propõe sugerir. Porém, talvez seja interessante perceber a forma em que o filósofo mais sistemático e influente entre os Gregos, Aristóteles, discípulo de Platão, consagrou para a posteridade um lugar para a infância. Embora Aristóteles não tenha um livro ou tratado específico sobre a infância, as suas numerosas observações no marco de seus tratados de biológica, psicologia, ética e y política, dentre outros, permite reconstruir uma certa concepção da infância em consonância com as categorias filosóficas que compõem sua concepção do ser humano e do mundo. Para Aristóteles, toda criança é uma criança em ato e, ao mesmo tempo, um adulto em potência, um ser que só alcançará sua completude e finalidade na adultez. Neste sentido, para Aristóteles toda criança é inacabada, incompleta, imperfeita por natureza e essa falta de completude estende-se aos planos ético e político. Uma passagem exemplar de A ética a Nicômacos diz:
“Por outro lado, cada um julga bem sobre as coisas que conhece e é um bom juiz de todo aquilo que conhece; de cada cosa em particular quem é instruído nela e, de modo mais absoluto, quem é instruído respeito de todas as coisas. Por isso, a criança (néos) não tem um bom ouvido para a política. Pois ela é inexperiente sobre as ações da vida e os discursos [da política] delas partem e sobre elas versam; ademais, por deixar-se levar pelos seus sentimentos, escutará em vão e sem proveito, pois a finalidade da política não é o conhecimento mas a ação (prâxis). E nada muda que seja uma criança em relação à idade ou ao caráter (êthos) pois o defeito não está no tempo, mas em viver e perceber cada coisa segundo a sensação (páthos). Para tais seres o conhecimento se torna inútil, da mesma maneira que para os incontinentes; ao contrário para os que produzem seus desejos segundo a razão saber sobre essas coisas resulta muito proveitoso.” (Aristóteles, Ética a Nicômacos I 3, 1095a1-12)
As palavras de Aristóteles soam tão claras e familiares, tão próximas na distância. A questão não tem a ver diretamente com a idade. Neste sentido, o defeito principal das crianças é que elas ainda não estão inseridas no âmbito da razão e como outras classes que fazem parte por diversos motivos do mesmo grupo – como os idosos, bêbados ou loucos – não faz sentido abri-lhe as portas da ética e da política. É energia dilapidada para quem não pode aproveitá-la. Quem é pura sensação (pâthos) não tem espaço num mundo em que manda a razão (logos). Por razões semelhantes, as crianças não têm espaço na ética e na política. A tarefa do filósofo é deixar isso bem claro: consagrar a “evidente” exclusão da infância do mundo da pólis.
Esse lugar aberto por Platão e Aristóteles para a infância foi consagrado e ampliado por certas vozes do ideário iluminista moderno: nele, a infância deixa de ser apenas uma etapa da vida para representar, de um modo mais geral e paradigmático, uma possibilidade evolutiva do ser humano. Trata-se de uma possibilidade a ser superada na medida em que é necessário abandonar a infância para alcançar o bem-estar que a razão e a ciência prometem; para Kant, por exemplo, a infância, a minoridade, como minoridade, é uma metáfora de uma vida sem razão, obscura, sem conhecimento; ela representa a contra-cara das luzes, a falta de resolução e coragem no uso das próprias capacidades, a consagração da heteronomia (I. Kant, 1982/1784).

ii. Outras infâncias afirmadas pela filosofia
Porém, ao longo dos tempos antigos, medievais e modernos, a infância recebe também outras formas e outros lugares nos discursos filosóficos. Onde encontramos de forma mais radical um novo pensamento a respeito das crianças e da infância é em Assim falou Zaratustra, de F. Nietzsche, em particular na célebre passagem das “Três Metamorfoses”. Nietzsche, um dos críticos mais ferozes dos ideais ilustrados, descreve ali as transformações do espírito e a criança aparece no lugar mais afirmativo possível, última viagem ou superação do espírito, última transformação das transformações, depois de deixar atrás as formas de camelo e do leão.
O camelo é o espírito que carrega, sem qualquer resistência, os pesados valores da tradição cultural que, com sua pretensão de se constituir na totalidade dos valores colocam em evidência sua a mais absoluta falta de liberdade do camelo; o camelo, preso ao dever, renuncia a sua liberdade, respeita a tradição e até desfruta do peso que carrega, na medida em que os pesos mais formidáveis colocam mais a prova sua fortaleza; porém, na solidão do deserto, o espírito se transforma em leão; adquire uma primeira forma de liberdade que surge da rebelião do “eu quero” perante o “tu deves”: esta é a liberdade da crítica, já que ao dizer não, resiste os valores impostos; mas o leão ainda não é dono de uma liberdade afirmativa e não consegue criar novos valores, o que só é possível na terceira e suprema transformação: a criança. Perante a pergunta sobre o que poderá fazer a criança que não possa fazer o leão, Zaratustra responde:
A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação. (Nietzsche, 1998/1883, p. 30)
Frente ao direito aos valores novos do leão, mas ainda sem as novas criações, a criança constitui a criação mesma, um novo começo para os valores, a liberdade mais afirmativa, tempo circular que retorna, pura afirmação da vida. A inocência e o esquecimento isentam a criança dos rancores e o ressentimento. Ela é a pura afirmação de um novo início, de uma pura criação. Não há espírito mais afirmativo, criativo e livre, no Zaratustra, do que o de uma criança.
Em quase todos os filósofos contemporâneos mais influenciados por Nietzsche, podem se notar ecos desta concepção da criança como criação e não como algo a ser criado. Vamos nos referir brevemente a alguns deles.
Contemporaneamente, J.-F. Lyotard mostrou como, em que pesem as pretensões iluministas, a infância não é uma etapa o fase da vida mas a “própria condição de ser afetado” (J.-F. Lyotard, 1992, p. 420). A infância, diz Lyotard, está desde sempre, numa temporalidade sem cronologia, sem antes e depois, incrustada no corpo, sendo o próprio corpo, para toda a vida (1997, p. 44-5); está esperando o inesperável, o que não pode vir e ao mesmo tempo precisa ser chamado; como se fosse possível liberar-se do enigma de sermos nascidos e não nascedores e ainda manter viva a “herança do nascimento” (ibid., p 69).
A infância, a natalidade, o corpo sem lei, a estética, é o que salvam o mundo de sua caducidade caduquice , de sua “ruína normal”, natural. Há mundo novo, criação, transformação por que há a infância, por que é possível frutificar o acontecimento que leva consigo cada nascimento. A infância é o reino do “como se”, do “faz de conta”, do “e se as coisas fossem de outro modo...?”, a forma única e, a uma só vez, múltipla de todo acontecimento; é levar a sério a novidade de cada nascimento; é impedir que cada nascimento se acabe em si mesmo; é tornar múltipla, diversa, a novidade de todo nascimento; é estender o nascer à vida toda e não apenas ao acontecimento biológico do parto:
“Uma criança não deixa de nos ter nascido. O nascer não é apenas o fato biológico do parto, mas sob a cobertura e a descoberta deste fato, o acontecimento de uma possível alteração radical no curso que empurra as coisas a repetir o mesmo. A infância é o nome desta faculdade, tanto mais quanto aporta, no mundo do que é, o espanto do que, por um instante, não é ainda nada. Do que já é mas sem ainda ser algo. Digo esse nascimento incessante porque marca o ritmo de uma “sobrevivência” recorrente, sem metro(sem medida).”(ibid.,p. 72)
Então, sempre nos nasce uma criança, a vida toda. Porque a infância é o acontecimento que impede a repetição do mesmo mundo, pelo menos a sua possibilidade, um novo mundo em estado de latência. Somos nascidos a cada vez que quer percebemos que o mundo pode nascer novamente e ser outro, completamente distinto daquele que está sendo. O nome de uma faculdade chamada criação, transformação, revolução, isso é a infância.
O italiano Giorgio Agamben, particularmente em seu livro Infância e historia (2005) traça uma sorte de ontologia ontologias?da infância, em sua relação com a experiência, a linguagem e a história. Agamben mostra muito sugestivamente que se bem é verdade que a infância é a ausência da linguagem, não é menos verdade que a adultez é a ausência da possibilidade de se inscrever na linguagem, porque já se está dentro dela dele; em outras palavras, e se tiramos os casos excepcionais, são sempre crianças e não adultos que aprendem a falar. Isto significa que uma das mais importantes e substantivas características humanas, a aprendizagem da linguagem, está ligada a uma disposição infantil: se abandonamos a infância, abandonamos também a possibilidade de entrar na linguagem, seja porque renunciamos a essa possibilidade, seja porque já estaremos dentro dela.
Dessa maneira, a infância simboliza um rito de passagem entre o que somos enquanto seres jogados no mundo e o que fazemos com esse sermos jogados no mundo. E trata-se de um rito especificamente humano, na medida em que o ser humano é o único animal que aprende a falar e também de um rito fundacional, na medida em que sem uma infância não teríamos como passar da natureza à cultura. Nessa mesma medida, a infância é também a condição da história e da experiência. Sem infância, o ser humano seria natureza inerte. Se não há possibilidade do ser humano ser a-histórico, é precisamente porque não fala desde “sempre”, porque tem que aprender a falar (a falar-se, a ser falado) numa infância que não pode ser universalizada ou antecipada, uma infância da e na experiência, uma infância da e na história.
Experiência e infância não antecedem cronológica mas logicamente a linguagem: são suas condições originárias, constitutivas, já que não há humanidade (condição de ser humano), não há sujeito que possa falar (ou ser falado) sem elas. Num certo sentido, estamos sempre aprendendo a falar (e a ser falados), nunca “sabemos” falar (ou somos “sabidos” pela linguagem) de forma definitiva, nunca acaba nossa experiência na e da linguagem. Nessa mesma medida, o ser humano não pode renunciar à infância. Se ele nascesse sem infância, com a linguagem nos seus genes, seria pura natureza, língua morta, repetidor sempiterno de mesmo; se ele renunciasse à infância em nome da adultez perderia a capacidade de se inventar, de encontrar novos inícios, de abrir a possibilidade de falar para criar um novo mundo e não apenas para reproduzir o mesmo mundo.
Por isso, experiência e infância são condições de possibilidade de uma existência humana que se preze como de tal, não importa sua idade. É conhecida a afirmação de Sócrates na Apologia de Sócrates de Platão de que uma vida sem exame, sem interrogar-se a si próprio, não merece ser vivida (38a). Da mesma forma, uma vida sem infância, sem uma relação infantil com a linguagem, com o que sabemos e com o que somos, parece também uma vida vazia de sentido.
Desta maneira, a infância exige pensar numa temporalidade para além do tempo “normal” da existência humana, das etapas da vida e das fases do desenvolvimento. A infância tem muito a ver com uma possibilidade de intensificar certa relação com o tempo, de instaurar um outro tempo, como se as metamorfoses apontadas no Zaratustra se dessem num círculo repleto de intensidades, mais do que numa linha contínua de progressos sucessivos. Vale a pena notar que já os antigos gregos afirmaram uma outra temporalidade intensiva associada à infância. O primeiro foi Heráclito, no século V a.C., quem no fragmento que conservamos com o número 52 (DK) afirma: “O tempo é uma criança que joga um jogo de oposições. De uma criança, seu reino”. “Tempo” traduz aión, que, diferentemente da mais habitual chrónos, alude não a um tempo objetivo, numerável, do movimento natural, mas ao tempo enquanto destino, período de vida humana (Liddell, Scott, 1966, p. 45), o tempo das durações e das intensidades. Neste fragmento se identifica aión com uma criança (país) que joga (literalmente, teríamos que traduzir paízo como “criancéia”, a ação mais própria de uma criança) um jogo de oposições. E se diz que a criança é rei (basileíe) desse tempo humano, do aión.
Esse tempo onde a criança reina em Heráclito mostra uma nova possibilidade do espírito; tira a criança desse tempo cronológico onde ocupa um lugar de debilidade e a situa em outro tempo, onde ocupa o espaço máximo de poder e é soberana. Talvez Heráclito queira destacar a força ímpar da experiência infantil do tempo, do mundo, da espontaneidade, ingenuidade, e imoralidade infantis, a qualquer idade. Aión, o tempo infantil, é o tempo circular, do eterno retorno, sem a sucessão consecutiva do passado, presente e futuro, mas com a afirmação intensiva de um outro tipo de existência.
Ainda o mesmo Platão da formação política da infância tenra e informe deixa ver uma outra infância associada a outra temporalidade. O contexto é especialmente inspirador: trata-se do Banquete, diálogo que narra de maneira bastante indireta uma afamada festa onde estiveram presentes, dentre outros, Agatão, Sócrates, Alcibíades, Fedro, Erecsímaco. Sucedem-se uma série de discursos de elogio ao deus do amor, Éros, e Sócrates oferece seu elogio reproduzindo um discurso que diz ter ouvido de uma sacerdotisa de Mantineia, Diotima. No interior de seu discurso, Diotima, portadora de uma dupla exterioridade, mulher e estrangeira, diz que, embora chamemos da mesma maneira às pessoas durante toda a sua vida, ninguém é efetivamente o mesmo; ao contrário:
néos aeì gignómenos (Platão, Banquete 207d)
O leitor aceitará um pouco de suspense na tradução. Note-se que Heráclito relacionou um tempo aiónico à infância; usou para isso uma das palavras que os gregos tinham para mencionar as crianças, vinda do campo semântico da alimentação: país; Platão, por sua vez, usa outra palavra tempo e outra palavra infância. Aeì está ligada etimologicamente a aión e significa ‘sempre’, ‘cada vez’, ‘a todo momento’. Neós significa, como já vimos, o novo, a criança em quanto algo novo que irrompe no mundo; gignómenos é uma forma do particípio presente do verbo gígnomai em voz média e passiva (na língua grega o verbo nascer não tem voz ativa), que da uma idéia de tempo relativo, não absoluto sobre um tema inacabado (Murachco, 2001, p. 275): ‘está sendo nascido’, ‘é nascido’, ‘é chegado a ser’. De modo que poderíamos traduzir essas três palavras platônicas como: “uma criança sempre está sendo nascida”; ou “algo novo a cada momento é nascido”; ou alguma outra variante que combine estes matizes e significados. Desta maneira, o que Diotima sugere é que embora os nomes nos façam pensar em seres únicos e monoformes, somos sempre algo novo, estamos em permanente devir, não há como renunciar à infância. Assim, o que interessa notar é que, no mesmo Platão, a infância também está associada a uma outra temporalidade diferente da que a cronológica; também ali a infância é uma imagem da novidade, da criação, da interrupção do dado e da transformação, sempre presente, de um novo ser.
Ligada ao sentido de gígnomai como devir, uma outra categoria temporal é introduzida por um dos filósofos contemporâneos mais fortemente nietzscheanos, como G. Deleuze. Deleuze cria o conceito “devir-criança”. O devir é a interrupção da lógica histórica que se dá no tempo cronológico. Se, por um lado, existe a história como continuidade sucessiva de passado, presente e futuro, por outro lado, temos a ruptura do tempo histórico, os acontecimentos, as revoluções, os devires.
Devir-criança não é se tornar uma criança, mas?se encontrar no tempo chrónos da infância. Devir é se encontrar no acontecimento, no movimento, na multiplicidade, com algo sem passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com geografia, com intensidade e direção próprias. Um devir é algo “sempre contemporâneo”, criação cosmológica: um mundo que cria e a criação de mundo (G. Deleuze, C. Parnet, 1998, p. 10-15).
O devir-criança é uma expressão minoritária do ser humano, sem modelo, sem paradigma, paralela paralelo? a outros devires minoritários (devir-mulher, devir-animal), em oposição ao modelo e à forma Homem dominante. O devir criança é uma forma de encontro que marca uma linha de fuga com relação à forma majoritária da subjetividade contemporânea, um novo espaço para poder sermos sempre de uma outra maneira, para poder criarmo-nos como sendo outros dos que somos.
Deleuze afirma que as crianças obtêm suas forças do devir molecular que fazem passar entre as idades (Deleuze, Guattari, 1997, p. 70) e que saber envelhecer não é manter-se jovem, mas extrair os fluxos que constituem a juventude de cada idade (ibid.). Devir-criança é, assim, uma força que extrai, da idade que se tem, do corpo que se é, os fluxos e as partículas que dão lugar a uma “involução criadora”, a “núpcias anti-natureza”, a uma força que não se espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada. O devir-criança é uma forma do devir-revolucionário.
Apoiado em outra tradição, num texto precioso, J. Derrida introduz alguns apontamentos para pensar a infância através de uma conversa com Anne Dufourmantelle em que a questão principal é a hospitalidade (Derrida, 2000). A hospitalidade, Derrida sugere, surge quando nos questionamos sobre a? forma da relação que estabelecemos com o estrangeiro. Daremos um rodeio pela estrangeridade e a hospitalidade para chegar até a infância. Derrida ajuda a pensar na maneira em que recebemos o estrangeiro perguntando-se (nos):
“Devemos exigir ao estrangeiro compreendermo-nos e falar a nossa língua, em todos os sentidos desse termo, em todas suas extensões possíveis, antes e para poder acolhê-lo entre nós?” (p. 21-22)
A exigência ao estrangeiro torna-se dramática em todos os sentidos do termo: acaso é necessário e ainda possível exigir do estrangeiro que saia de seu mundo e entre em outro mundo para poder acolhê-lo? Acaso não estar-se-i-a incluindo nesse convite ao estrangeiro o decreto de sua própria morte enquanto tal? Trazer o estrangeiro à terra do outro, à outra terra, não significaria matar sua estrangeridade? Derrida coloca a antinomia de modo igualmente elegante e dramático:
“Se o estrangeiro já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, si compartilhássemos com o estrangeiro todo o que se compartilha numa língua, seria o estrangeiro ainda um estrangeiro e poderíamos falar a respeito dele de asilo e hospitalidade?” (ibid., p. 22)
Derrida nos ajuda a perceber de que maneira costuma-se receber ao estrangeiro, com novas novéis perguntas (ibid., p. 33): “como te chamas?” “Qual é teu nome?” “Como queres que eu te chame?” “De onde vens?”. O leitor já deve ter notado que as perguntas que se fazem ao estrangeiro são as mesmas perguntas que se fazem a uma criança desconhecida. Essas perguntas, e a conseqüente tentativa de nomeação, mostram uma necessidade de identificar e localizar ao outro. Porém, talvez fosse interessante pensar se a hospitalidade exige saber o nome e a identidade do outro ou se, ao contrário, a hospitalidade se dá ao outro sem nome, sem identidade, sem palavra. Afinal, há uma ou múltiplas hospitalidades? Todas fazem jus ao nome?
Derrida mostra também como a hospitalidade pode estar submetida a algumas condições que reforçam sua condição paradoxal: alguém pode tornar-se xenófobo, fóbico do estrangeiro, para defender seu direito à hospitalidade; alguém pode pensar que precisa primeiro ser dono de sua moradia, para receber nela a quem bem quiser.
Em outras palavras, o que Derrida nos ajuda a pensar é nas condições que são colocadas para que o estrangeiro possa ser acolhido ainda como estrangeiro. Quais são essas condições? Em que se fundamentam? O que elas permitem? O que elas impedem? Como não sucumbir à tentação do assassinato da estrangeridade do estrangeiro – e com ela do próprio estrangeiro – ainda, ou sobre tudo, em nome da simpatia, da generosidade e das mais belas palavras que são pronunciadas para aliviar a dor de tamanho homicídio?
Afinal, a hospitalidade parece submetida a uma antinomia indissolúvel, segundo Derrida nos sugere: ou ela se torna axioma não questionado, exigência radical sem condições – é nesse extremo está sob o risco da esterilidade, da impraticabilidade - ou ela se transforma em condicionamento oblíquo que coloca em questão sua própria razão de ser – é nesse extremo o que está sob o risco é seu próprio compromisso político.
O paradoxo tem, inclusive, diversas formas e dimensões: epistemológica, ética, estética. Consideremos por um momento a que diz respeito ao saber. Ou o anfitrião cala e isenta sua verdade e se deixa absolutamente transpassar pela verdade do outro, ou então ele proclama saber a verdade sobre o estrangeiro - e acompanha seu saber com a pretensa ignorância do estrangeiro sobre si; neste segundo estremo, o dono de casa se auto-proclama sabedor de uma verdade que o outro ignora, pretende se constituir na própria voz do outro: “eu te conheço, eu te sei, eu te nome, eu te revelo”. É o risco mais tentador da hospitalidade, o da paternidade que é, em última instância, o risco de toda pedagogia: o próprio saber que não permite perceber o que o outro sabe: a impostação de ignorância no outro, que não deixa ver o que é preciso ignorar em si mesmo. Porém, do outro lado, a completa ausência de saber perante o outro não parece uma alternativa menos perigosa, ameaçada ainda pelo risco de se tornar estéril e impotente.
Derrida resolve o paradoxo inclinando o balanço para o lado do estrangeiro. Com efeito, Derrida sugere que é o estrangeiro quem tem o poder de liberar o poder do dono da casa: é ele que convida o anfitrião a convidá-lo. Assim, o anfitrião torna-se anfitrião do anfitrião, convidado do convidado (ibid., p. 123-4).
Já é o momento de trazer estas considerações sobre o estrangeiro e a hospitalidade para pensar, infantilmente, a infância. O leitor já deve ter feito suas transposições: a situação não parece muito distinta. Os infantes são estrangeiros, falam outra língua, não falam a nossa língua e, contudo, temos que acolhê-los. Eis a questão principal de toda educação: como acolher a esses infantes-estrangeiros? Como receber a infância? Que perguntas fazê-lhe? Que língua falar-lhe? Que convite propor-lhe? Com que forças acolhê-la? Qual hospitalidade oferecer-lhe? Como não sucumbir perante a tentação de acabar com a infantilidade da infância, em nome da tolerância, da solidariedade, do diálogo, e de tantas outras palavras bem pronunciadas? Quando a infância assoma, as perguntas não são fáceis de serem respondidas.
As duas primeiras seções deste texto mostraram concepções da infância que abrem para duas formas radicalmente distintas de acolhida. A primeira é a mais trilhada: a infância, como etapa da vida, adquire sentido em função de sua projeção de um tempo contínuo e sucessivo. A intervenção educacional tem um papel preponderante nessa linha que é pensada desde a lógica da formação da infância. Ela adquire sentido na medida em que as crianças não têm um ser muito definido. Assim, a educação terá a marca de uma projeção ético-política definida para o bem dos que atualmente habitam a infância, para assegurar seu futuro, para fazê-los partícipes de um mundo melhor. A infância é o material das reformas éticas e dos sonhos políticos a realizar. A educação é o instrumento para realizar tais reformas e sonhos.
De modo diferente, a segunda seção afirma uma infância ligada a outra temporalidade que a das etapas da vida, a sucessão e extensão. A infância é pensada mais como condição do que como fase, como dimensão mais do que como etapa. Assim ela é colocada do lado da experiência, do acontecimento, da ruptura da história, da revolução, da resistência e da criação. A partir dessas aproximações, quais desdobramentos se seguem para sua educação? Se o modelo que prima na primeira lógica é o da formação da infância – inclusive da formação filosófica da infância -, qual é a relação que pode se estabelecer com essa infância afirmativa, intensiva, aiónica, persistente, da segunda seção? Estamos já em condições de inaugurar uma nova é última seção deste trabalho.
iii. Infância e estrangeridade, num infante da filosofia, e numa criança que filosofa
Os movimentos que temos traçado, na seção anterior, no âmbito da filosofia da infância, geram as condições e de alguma forma preparam uma nova forma de relação educacional entre a infância e a filosofia. Se as filosofias clássicas da infância justificam modelos educacionais de formação filosófica da infância, as filosofias contemporâneas descritas no apartado anterior permitem inverter um pouco as coisas e colocar a infância no seu lugar, o dos inícios. Abrem assim uma nova terra para pensar uma outra educação da infância ou, invertendo as palavras, uma infância para a educação.
Para pensar essa infância da educação, vou chamar em minha ajuda, duas personagens bem diferentes, ambas infantis. A primeira é um infante da filosofia, Sócrates, filósofo dos inícios, nascedor da filosofia quem, frente ao tribunal que julgava sua vida e que finalmente iria condená-lo a morte, fez uma relação entre a filosofia, a infância e a estrangeridade. Certamente, para poder atribui-lhe esta relação, temos que acreditar no relato de sua defesa que fez Platão na Apologia, dada a falta de testemunhos diretos deixados por Sócrates, mas de fato pouco importa se o relato que Platão faz é verídico ou inventado, por que se não foi Sócrates quem fez essa relação, foi o próprio Platão ou, mais certamente, uma terceira figura, alguém entre os dois. O que conta é o que essa intervenção nos permite pensar.
A passagem está no começo da Apologia de Sócrates (17d ss.) e, portanto, no começo da alocução de Sócrates frente aos seus acusadores. Ele está velho, tem 70 anos e pela primeira vez é chamado a se apresentar perante um tribunal. Ali, Sócrates afirma, frente aos concidadãos que o julgam pela acusação de introduzir novos deuses na pólis e de corromper os aos jovens, que ele se sente como um estrangeiro (xenós): sua língua e sua maneira de relacionar-se com a palavra são estrangeiras aos modos habituais dos tribunais da cidade amada, da Atenas em que viveu sempre e da qual só saiu para defendê-la nas guerras contra seus inimigos; por isso, por sentir-se estrangeiro, falará com o sotaque e o modo de falar de quando foi criado (etethrámenen, forma derivada do verbo trépho, alimentar, nutrir, criar), qual seja, a forma de se expressar de sua infância. Estrangeiro, falará como uma criança: ingênuo, brincalhão, afirmativo. O estrangeiro chama ao infante.
Eis o chamado de Sócrates à infância. De forma implícita, o filósofo declara a estrangeridade da filosofia perante a política e acode a outra estrangeira amiga: a infância. O filósofo mostra ao político o direito de chamar à infância, ouvi-la e nela se situar para poder falar e se defender; é a sua estrangeridade, a estrangeridade da filosofia perante a política, seu habitar uma outra terra da ordem dominante das coisas, seu situar-se fora do mundo da política que lhe confere esse direito. Como estrangeira que é, a filosofia quer que a política escute à infância. Como estrangeiro que é, o filósofo fala uma língua infantil.
Se a julgamos pelo resultado final, a estratégia de Sócrates não foi muito bem sucedida: o estrangeiro infantil foi condenado à morte. Sócrates foi, na sua defesa, uma criança nietzscheana: ingênuo, brincalhão, afirmativo. Os juízes não o perdoaram. Não podia ser de outra maneira por que, como afirma Lyotard (1997, p. 51), a morte tem ciúmes do nascimento: a política (a lei) tem ciúmes da infância (o corpo). A política instituída condenou Sócrates e, com ele, a filosofia e também a infância.
Contudo, talvez ainda mereça a pena dar atenção e valor a esse gesto socrático. Por um lado, a estratégia oposta de um Platão mais maduro - na mesma A República que pretendia consagrar a formação política da infância - de reunir a filosofia e a política na figura de um governante que filosofe ou um filósofo que governe, não foi muito melhor sucedida: ao contrário, o próprio Platão quase acabou sendo vendido como escravo; além disso, o lugar para a infância ali consagrado é, pelo menos, incômodo e asfixiante; para pior, o programa de A República inspirou não poucas aventuras políticas de duvidosos valores políticos; por outro lado, por que devemos apreciar uma estratégia apenas em função do resultado alcançado ou de sua eficácia? E ainda, se tivéssemos que valorizar a estratégia de Sócrates segundo a sua eficácia, talvez devessemos pensar mais uma vez nela. Porque é verdade que a infância não salvou a Sócrates ou à filosofia da morte. Porém, talvez Sócrates estivesse mais preocupado com outras coisas do que a morte e queira afirmar outras vidas no momento de enfrentar os juízes. Quiçá seu gesto estrangeiro e infantil mereça certa atenção pelo que revela: que o assassinato do estrangeiro infantil pela política instituída coloca a estrangeridade e a infância num lugar muito mais arriscado e exposto, mas também potente e afirmativo; afinal, as mostra como ameaças, fugas, a afirmações de outros mundos, outras políticas.
Ademais, nenhum dos filósofos consagrados pela história teve essa delicadeza frente à infância, esse gesto de aproximação. Durante a vida, as conversas de Sócrates com jovens em tantos diálogos de Platão, mostram, por exemplo, que Sócrates não apenas lembrou da infância frente aos juízes. É verdade que muitos desses diálogos são em verdade monólogos e que Sócrates ouve bastante pouco a seus jovens interlocutores; mas, pelo menos, a inclusão dos jovens no mesmo espaço público aberto pelo pensamento e a inclusão da infância na mesma terra estrangeira da filosofia nos dá o que pensar. E, de fato, Sócrates tem bastante menos piedade com os interlocutores de mais idade aos que (como, por exemplo, Eutífron, Górgias, Trasímaco ou Cálicles) trata muito mais duramente. Sua sensibilidade é sempre maior perante os mais novos. Assim, Sócrates teve a infância como interlocutora na vida e como inspiração na morte; deu-lhe outros espaços para viver e para morrer.
De modo claro, a língua de Sócrates, a sua língua estrangeira, a sua defesa infantil, consagram a impossibilidade da interlocução entre um modo de praticar a filosofia e um modo de exercer a política, desvelam a pseudo-hospitalidade de uma política perante uma filosofia, da lei perante o corpo, da pólis frente à infância. Elas mostram que a exclusão da infância pelos filósofos não é apenas uma aventura de alguns, mas uma política do próprio pensamento, uma verdade da política instituída que atravessará os mais diversos dispositivos institucionalizados.
Frente a essa política do assassinato e do desterro, qual o significado educacional desse gesto socrático? O que pode render colocar juntos o estrangeiro e o infante na hora de pensar a educação da infância? O que permite pensar esse apelo à estrangeridade e a fala infantil? O que inspira, em terras educacionais, esse gesto afirmativo, essa palavra livre, firme, sem retroceder, frente à acusação e a ameaça?
Para pensar essas perguntas, vou trazer como ajuda a uma outra testemunha infantil mais literal, uma criança. Vou correr um risco importante, mas acredito que vale a pena. Afinal não há como evitar riscos quando se quer pensar, quando se afirma a dimensão de experiência do pensar. A palavra ex–per–iência tem a mesma raiz temática indo-européia per que está, por exemplo, nas palavras per-curso e per-igo. Quando o pensar se translada, se desloca, não há como evitar os riscos. De modo que vamos a arriscar.
O exemplo é de minha própria casa, de uma filha, da infância mais evidente. Tenho três filhas e vou me referir a algo que vivemos com a menor delas, Milena, que tem agora três anos e tinha dois o ano passado, quando estávamos, durante o inverno, de férias em Buenos Aires, Argentina, onde eu nasci. Milena é brasileira. De fato, os dois éramos estrangeiros nessa viagem, porque embora eu estivesse no lugar onde nasci, hoje sou mais um estrangeiro nessa terra, falo uma outra língua. É curiosa essa condição dos que escolhemos uma terra diferente para morar. Passamos a ser estrangeiros na terra onde nascemos e nunca deixaremos de ser estrangeiros na terra em que habitamos.
Mas isso não interessa agora. Interessa Milena, brasileira, estrangeira mais literal na Argentina. Milena falava português e entendia bastante castelhano. Inclusive, nessas duas semanas de férias na em Argentina começou a pronunciar algumas palavras em castelhano. Um dia, enquanto estávamos fazendo qualquer outra coisa, Milena me disse: “´Tia´ em português se diz ´tía´ em espanhol.” A pronuncia era precisa, em uma e outra língua. A diferença não pode ser apreciada na escrita, a não ser por um acento. Na fala, a diferença diz apenas respeito à pronunciação da ‘t’. Sorri, com bastante alegria. Devo ter soltado duas ou três expressões de admiração do tipo: “Bravo, Milena, é isso ai! Muito bem!!!”. E logo a seguir, sem nos dar descanso, minha deformação profissional me levou a replicar a Milena com uma nova pergunta: “Milena, se ‘tia’ em português de diz ‘tía’ em espanhol, então como se diz em espanhol o que em português se diz ‘tio’?”.
Já me preparava para uma alegria pedagógica sem par. Apenas esperava sua confirmação. Devo ter pensado algo assim como que não podia deixar passar a oportunidade para que Milena aprendesse uma coisa nova, uma nova palavra, uma nova relação, uma nova analogia. “Não posso não fazer o que devo fazer” deve ter pensado o camelo nietzscheano e a pergunta saiu quase que de maneira automática, sem que se pudesse pensar muito nela; o camelo não devia deixar tempo para nada, não fosse ? seja que algo perturbasse a esperada confirmação que Milena evidentemente ia lhe propiciar para poder seguir levando sua pesada carga. Afinal, era a oportunidade de que uma aprendizagem significativa gerasse outra aprendizagem significativa, como tanto se afirma em nossos dias no discurso pedagógico dito progressista.
Olhei para Milena. Devo ter repetido uma ou duas vezes a mesma pergunta. Milena já tinha demorado muito mais do esperável – do que eu podia esperar, certamente – quando olhou para mim sorridente e, sem deixar de sorrir disse fresca e tranqüilamente: “’tio’ em português é... ‘amigo’ em espanhol”. Felizmente, consegui respirar, conter minha longa e seca língua de desertos e simplesmente sorri. Coisa rara, o camelo conseguiu não exteriorizar sua torpeza. Tentei apenas pensar naquilo que Milena, estrangeira de dois anos na minha terra, tinha me dado: uma lição. Quero pensar alguns alcances e projeções desses ensinamentos à luz das perguntas anteriormente colocadas a partir do outro infante. Em outras palavras, quero pensar nos inícios de uma relação com a infância que este exemplo e o de Sócrates sugerem e ajudam a pensar.
Antes, alguns esclarecimentos. Milena não respondeu o que o camelo esperava que ela respondesse. Seu pensamento, vivo, surpreendeu mais uma vez. Contestou minha lógica instrutora, minhas pretensões antecipatórias. Conseguiu, dentre outras coisas, me fazer pensar. E penso que não seria interessante interpretá-la, explicá-la. Neste mundo psicopedagogizado da escola seria simples encontrar explicações sofisticadas e ao mesmo tempo fáceis, usar nossos corriqueiros poderes e saberes, nossas velhas artimanhas, para traduzir aquela língua, a princípio, incompreensível. Seria bastante fácil se colocar no lugar de decifrador do enigma: “é que ela está costumada a ouvir a palavra “tia” na escola” e então por isso...”; “ela tem uma relação mais afetiva com os tios do que com as tias, por isso...”; “ela quis mostrar que...”. As explicações das causas que poderiam ter motivado a Milena a associar ‘tio’ com ‘amigo’ em vez de com ‘tío’ poderiam multiplicar-se até o infinito. Não me interessa andar esse caminho: o sacrifício seria alto demais em relação à força do que o enigma da fala da Milena poderia nos ajudar a pensar. É o caminho que coloca à infância como ausência, fora, objeto de interpretação.
Também não entrarei nos mistérios do que a Milena pode ter querido dizer. Não são suas intenções que estão aqui em jogo. Não vou interpreta-la ou explica-la. Ao invés disso, de tentar falar por uma criança estrangeira ou dar conta de suas supostas intenções, vou procurar pensar um novo início, um outro ponto de partida, afirmativo, inocente. Não quero perder a oportunidade do nascimento que a infância propicia. Não quero continuar a ser camelo ou leão. Quero me atrever a ser a criança de Zaratustra, estar à altura da infância. Para isso, vou aproximar o camelo de Sócrates e Milena na expectativa de que ele consiga se contagiar de tanta infância próxima e assim se transformar. Vou então afirmar esse início com Sócrates e Milena. Quero pensar o que pode nascer de dar atenção e colocar junto a um infante da filosofia e a uma infante que filosofa. Vou abrir-me ao que pode nascer desse encontro. Dividirei esse nascimento em quatro aprendizagens.
A primeira aprendizagem afirma que a amizade está no início do pensamento. A infância nos chama e dá a esse chamado o nome da amizade. Acudimos ao chamado. É um chamado ao pensamento que instaura a amizade como sua condição: não há pensamento novo, infantil, sem amizade. A conhecida etimologia de ‘filosofia’ (e de todas as palavras gregas compostas que começam pela forma phílos) tal vez nos ajude. A amizade é uma espécie de início, de infância, um velho e novo início para o pensar. Sócrates o diz a seus interlocutores: só na comunidade da amizade, do mesmo (autó) e do diferente (állo) na sensibilidade que se compartilha com alguém, é possível dialogar (Górgias 481c). Não é necessário pensar em relações pessoais, mas em relações afetivas e intensivas no próprio pensamento.
Precisamente no contexto de uma relação de família, Milena me fez pensar que o próprio pensar não é assunto da instituição familiar. Talvez também não o seja da instituição escolar. Não o sabemos. De fato, Sócrates pensava no espaço público da pólis, sem muitas condições de qualquer tipo de institucionalização. Também por isso é interessante o exemplo de Milena. Mas deixemos um pouco em paz a escola. O que interessa é, penso, mais profundo: Milena sugere que se pensa, entre outras condições, sob a condição da amizade. Não pensamos para ser amigos, mas por que somos amigos pensamos. A amizade está no início. A falta de amizade não gera pensamento, filosofia, educação, nada. Aristóteles afirma palavras próximas às de Sócrates no Górgias na já citada Ética a Nicômacos para definir o amigo: phìlos àllos autos: amigo, outro mesmo, outro si mesmo, amigo, outro, mesmo.
É particularmente interessante para nosso início um diálogo de Platão, o Lísis, em que o tema principal é a philía, amizade, e Sócrates se diverte junto a várias personagens infantis. Na última conversa, com Lísis, quem dá nome ao diálogo, mostra o sentido afirmativo da negativa de Sócrates na Apologia de aceitar ter sido mestre (didáskalos, 33a) de alguém. Sócrates não foi mestre no sentido de não ser um instrutor, alguém que repassava conhecimento para outro; não lhe interessava na relação pedagógica algo da ordem da transmissão de uma matéria, mas o impacto que esse contato poderia ter no seu interlocutor; esse impacto, educacional, só é possível quando a amizade está no início do encontro com o outro, no pensamento que os atravessará.
Assim, se um instrutor (didáskalos) repassa conteúdos de uma arte qualquer, Sócrates problematiza os valores que perpassam e dão sentido aos conteúdos próprios da arte que os instrutores ensinam. Ele pretende provocar nos seus interlocutores uma mudança na relação que eles têm consigo mesmos e com seus semelhantes frente a esses valores.
De um modo mais geral, o sentido principal dessas conversações socráticas com infantes não parece ser que o outro saiba um saber ignorado, ou que deixe de saber um saber não pensado, mas, fundamentalmente, que transforme sua relação com o saber. Em palavras de Pierre Hadot: “O verdadeiro problema não é, então, saber isto ou aquilo, senão ser de uma ou de outra maneira”. (1999, p. 56). Resta saber se Sócrates permitiu-se também a si mesmo transformar sua relação com o saber, no seu contato com a infância. A dizer verdade, a anedota da visita ao oráculo de seu amigo Querefonte não é muito alentadora se lida como doadora de sentido ao conversar socrático: confirmar ao oráculo, qual seja, a superioridade do saber socrático, da filosofia, o saber de não saber, perante todos os outros saberes. Mas também, algumas comparações que Sócrates aceita gostoso? para si mostram que as coisas são mais complexas. Por exemplo, ele se vê como Dédalo, figura mitológica que criava estatuas que precisavam ser encadeadas para não sair do lugar (Eutífron 11b ss.) e como o pez torpedo (Menón 79e–80c) que deixa entorpecidos aos que saem ao seu encontro. Mas, em ambos os casos, coloca como condição seu próprio movimento: ele é um pouco mais terrível que Dédalo por que coloca em movimento tanto suas criações quanto as dos outros; ele é aceito ser visto como pez torpedo a condição de que se perceba que ele leva todos os outros à aporía por que ele mesmo se encontra em aporía e não no bom caminho (euporía).
De qualquer forma, em todos esses encontros, a presença da amizade, não necessariamente entre as pessoas, mas entre os pensamentos que se dispõem a se encontrar é decisiva: sem ela, nada parece dar certo (cf. por exemplo, Eutífron, Górgias ou República I). Este nascimento da amizade no pensamento e do pensamento na amizade que Sócrates e Milena sugerem, abre um mundo para pensar a uma outra educação da infância, a relação entre alguém que se diz disposto a ensinar e um outro que se diz disposto a aprender. É claro que também se abre um mundo de perguntas: qual amizade? Amizade para que? Entre quem e quem? Ou, melhor ainda, amizade entre que e que? O que significa ensinar? O que significa aprender? Qual é a relação que a amizade no pensamento de quem ensina permite estabelecer com quem aprende? A força dessas perguntas sugere, de alguma forma, a potência desse início infantil, interruptor, criador de um novo mundo no pensamento e, por que não, na educação.
A segunda aprendizagem diz respeito ao perguntar e ao afirmar. Há um velho ditado que diz que a filosofia só pergunta. Contudo, Sócrates, infante da filosofia, afirma. A criança Milena também afirma. Ambos rebelam-se contra perguntas que não perguntam, dos acusadores, num caso, e de mim, no outro. Essas perguntas são perguntas de instrutores: perguntas que não interrogam, que não se interrogam. Pergunta-se o que já se sabe. Pergunta-se sem perguntar, por que se sabe ou se acredita saber, desde um poder auto-referente, para escutar a única resposta que confirma seu saber e seu poder, que os deixa inalterados nessa terra aparentemente firme que se outorgaram a si mesmos. Pergunta-se ao outro, estrangeiro, infantil, o que nunca se perguntaria a si próprio: o que já se sabe, já se pensa e não se pensa que mereça se voltar a pensar. Pergunta-se ao outro infantil para escutar-se a si mesmo e, senão se escuta a si mesmo, não se escuta nada; para mostra-lhe, em última instância, tudo o que se sabe e se pode se não responde a resposta devida. Contudo, a infância enfrenta a pergunta que não pergunta e afirma. Não responde o que se espera dela. Frente às perguntas dos acusadores e do camelo, a infância cria. De maneira tal que vale a pena notar que não é sempre a filosofia quem pergunta e não é só a pergunta que filosofa.
De maneira tal que interessa também pensar a nossa relação com o perguntar, o sentido que lhe damos, em nosso pensamento, no encontro com o pensamento do outro, com o outro pensamento. Neste ponto, não é fácil encontrar na história da filosofia exemplos inspiradores de um perguntar(se) que mereça esse nome. O próprio Sócrates é ambivalente neste ponto, porque embora seja muitas vezes apresentado como o campeão do perguntar e do não saber, e ele mesmo construa essa imagem de si em muitos diálogos de Platão, em outros, ao contrário, ele mostra saber um saber divino, superior, que enquanto tal não pode ser ilusório, e a pretensão de que sua prática irá fatalmente confirmar que seu próprio saber, o filosófico, o saber que se confere pouco valor a si próprio é superior a todos os outros saberes. Por isso, suas conversas nunca acabam até que os outros reconheçam que não sabem o que sabiam.
A terceira aprendizagem sugere que a estrangeridade pode também estar no início do pensamento. Aprender é traduzir. Traduzir é inventar. Inventar é inventar-se. Inventar-se é escutar o que não se escuta, pensar o que não se pensa, viver o que não se vive. A infância fala uma língua que não se escuta. A infância pronuncia uma palavra que não se entende. A infância pensa um pensamento que não se pensa. Dar espaço a essa língua, aprender essa palavra, atender esse pensamento pode ser uma oportunidade não apenas de dar um espaço digno, primordial e apaixonado a essa palavra infantil, mas também de educarmo-nos a nos mesmos, a oportunidade de deixar de situar sempre os outros na outra terra, no des-terro, no estrangeiro, e poder alguma vez sair, pelo menos um pouquinho, de nossa terra pátria, nosso cômodo lugar. Essa parece ser uma das forças da infância: a de uma nova língua, de um novo, outro, lugar para ser e para pensar, para nós e para os outros.
Sócrates e Milena, infantes, se revoltam contra a etimologia: pronunciam sua palavra, resolutamente, sem solicitar autorização para pensar. Pensam e dizem o que pensam. Essa palavra e esse pensamento infantis são uma força que nos dão o que pensar. Uma capacidade que pensa e dá o que pensar, isso também é a infância.
E dão a pensar o que? Levada a pensar uma infância para a educação, essa força da infância propõe uma nova terra para o ensinar e o aprender. Ajuda a perceber que a tão temida estrangeridade pode ser, ao contrário, uma possibilidade para um novo ensinar e aprender, uma potência para nos transformar a nós mesmos no encontro com a infância. Auxilia a pensar que esse encontro pode ser vital para que um novo pensamento e uma nova relação pedagógica possam emergir. Empurra a notar que um novo ensinar e aprender podem começar com uma forma de des-terro, de deslocamento, na própria terra do pensamento.
Sócrates fez esse deslocamento no momento decisivo em que sua vida estava em perigo. Frente ao velho mundo dos tribunais, da pólis que cai em pedaços, não se acomoda, não fala a velha língua, não quer se salvar, não aceita reproduzir o mesmo, mesmo a um custo alto. A língua estrangeira da infância abre-lhe um novo mundo, impede que as coisas prolonguem sua monotonia; essa mesma língua, que incomoda, provoca, desorienta os acusadores, é a afirmação da vida frente à morte mesmo perto, muito perto, do final, a força de certos inícios frente à debilidade de alguns fins.
Também para Milena a situação de infante estrangeira foi uma potência mais do que um limite. Estar no estrangeiro permitiu-lhe pronunciar novas palavras, novos pensamentos; fazer-se ouvir de outra maneira. Sua estrangeridade e sua infância foram uma força, que mobilizaram e provocaram mudanças, em si mesma e nos outros. Assim, mostrou que a estrangeridade da infância pode ser também um princípio singular para uma experiência permanente de aprendizagem.
A quarta aprendizagem abre novos sentidos para praticar a filosofia com crianças. Sócrates filosofava com crianças e jovens. Milena filosofa. Outras crianças filosofam. Talvez seja interessante pensar, a partir desses gestos infantis, os sentidos de um filosofar com crianças, os ‘para que’ fazer tal coisa. O discurso educacional está cheio das pretensões para salvar a educação, para formar as crianças como elas necessitam e para fazer das escolas instituições que realizem as utopias mais nobres e bem-intencionadas. A própria “filosofia para crianças” tem elaborado um refinado discurso salvacionista nessa direção: essa filosofia viria cumprir os sonhos de uma educação mais democrática para formar pessoas mais críticas, criativas e responsáveis e, com elas, um mundo mais justo e melhor.
Sem qualquer pretensão de fundar uma nova teoria ou uma nova proposta para salvar a educação, o encontro com a estrangeridade infantil de Sócrates e Milena pode nos ajudar a dispor alguns espaços mais ousados e mais sensíveis à infância para filosofar com ela. Ele pode nos fazer perceber e dispor para a infância e para nós um espaço mais interessante para entrar em relação educativa, para aprender e ensinar juntos de forma mais potente. Pode contribuir para abrir os sentidos para uma terra nova, que o nosso já sabido pensamento não insista em antecipar e deixe para nosso encontro com a infância pensar. Tal início exige, então, abrir nossa sensibilidade para pensar com a infância, de iguais para iguais, despojando-nos do que nossos saberes já capturaram, do que já conhecem, dos pontos de chegada que já pensaram para a educação da infância na língua adulta da filosofia. Como a amizade e a estrangeridade, talvez seja interessante então colocar a igualdade no início de um filosofar com crianças.
Neste sentido, como já sugerimos, talvez a figura de Sócrates seja é complexa demais e seja inspiradora de um movimento inicial que ele mesmo não confirme nos desdobramentos que dá a essa prática. De fato, Sócrates afirma e defende – por exemplo, perante seus juízes na mesma Apologia - a superioridade de seu saber, filosófico, sobre todos os outros saberes; e nos outros diálogos de Platão parece buscar confirmar esse lugar de superioridade nas conversas cotidianas: sempre parecem ser os outros os que têm que ir ao lugar disposto por Sócrates e, mesmo contra suas declamações, ele mesmo não parece muito disposto a sair de seu lugar.
De qualquer forma, a força do gesto socrático vá mito além de sua figura e essa inspiração inicial nos faz pensar se acaso o exercício da filosofia com crianças não poderia ser uma via interessante, uma ferramenta valiosa para abrirmo-nos a essa estrangeridade afirmada na seção anterior. A força expressiva da estrangeridade da Milena reforça esse gesto e nos faz perguntar em que medida o início que estamos pensando para a educação diz respeito a um abrir-se, desde o início, a outras línguas, não apenas nas palavras mas sobre tudo no pensamento e na vida. Talvez se trate, nessa relação, de perguntar menos ou perguntar de outro modo, e deixar-se atravessar pelas afirmações que hoje só servem quando confirmam os nossos saberes. Quem sabe, habitar outras terras filosóficas das que estamos acostumados a habitar nos permita sermos outros professores dos que estamos habituados a ser, dispor outros lugares de aprendizagem para nós e para a infância estrangeira que acolhemos.
É verdade: o mote de uma nova educação é muito velho. Parece gasto. Mas talvez não se trate da mesma novidade e da mesma velhice. Afinal, nossa relação com a infância está sempre ligada a certa relação com o tempo. Nesse sentido, o novo que afirmamos diz respeito também a uma ruptura na experiência do tempo, uma vida temporal mais intensiva do que extensiva, um outro tempo para o ensinar o aprender, para além das etapas, das fases, dos desenvolvimentos; um tempo de intensidades mais do que de extensões sucessivas.
O novo, no tempo – como na educação e em quase todas as outras coisas –, é questão de experiência. De atenção. De escuta. De inícios imprevistos, interruptores, criadores. De pensar inícios e de iniciar-se no pensar. A cada vez. Sempre, com a intensidade da primeira vez. Com a intensidade da filosofia. Da infância. Da composição entre infância e filosofia.
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